O que há pra hoje?

POESIA COLABORATIVA
Suor. Espaço de exercício poético e livre escrita...

sábado, 30 de março de 2013

Imensa longilínea


Perfil:
uma Olívia Palito
Cara de gente que não tem cor
coisa aguada
insossa
cor de nada
cor de flictis
uma cor sem cor que tão sem cor
nem cor tinha
flictis

Se considerava viciada,
nunca havia fumado,
mas achava-se.
A fumaça,
o cheiro
impregnavam-na
e por contágio
se achava fumante
fumante

Acordava todo dia e religiosamente
se perguntava
um punhado de três ou quatro coisas diante do espelho
e depois pensava:
Porque há algo ao invés de nada?
se maquiava
compunha-se com uma base excessivamente branca
que intensificava aquele
natural ar fantasmagórico


uma mulher
cheia de sacolas de boutique e de grife,
e que curiosamente carregava essas sacolas repletas de limões.
Limões apenas.
Ela passava os dias
visitando as lojas
curiando vitrines
bisbilhotando
e não comprando nada.
Era com isso, apenas, que se ocupava
a única coisa que ela fazia
era perambular pelas lojas
.
vivia a reboque disso
dias (in) úteis
domingos e feriados

uma mulher só
uma figura absolutamente só
cheia de nós pelas costas,
de rabugices, tiques e sandices:
tinha nojo de tomate, de comida, de alface
pensa que veio da terra e tem nojo
magra esquálida, raquítica
Olívia Palito
magra de ruim
fazia sempre tudo de limão
dieta de limão
limão noite e dia
fundamento da dieta limão alimentar
- limão metódico-
limão tira CC
purifica o sangue, o limão
era preciso comer o bagaço do limão
o bagaço do limão
o bagaço

era preciso ser séria, ser sincera
ser sincera com aquilo que se fazia cotidianamente
e ela era

vagava, perambulava, á deriva pelo comércio

Arrumava-se sempre como se estivesse
indo
pra um evento de gala
pegava as sacolas de limão
e punha-se na rua a farejar por entre as lojas
passava as horas, os dias,
visitando todas as lojas do velho assediador centro da cidade
procurava um algo
algo, uma alguma  coisa,
uma coisa importante, importantíssima
coisa (F)útil, coisa prática
coisa que sabia, mas não sabia dizer o que era
e, portanto, não havia vendedor que pudesse ajudar
sempre assim, nunca tinha esse algo,
nunca ninguém tinha essa alguma coisa
e a mulher, imensa longilínea, passava os dias
numa busca incessante por essa coisa que nunca se encontrava
e passava os dias visitando as lojas
e na busca
e procurando
e faminta
aquilo que ela queria, ou que achava que existia
e em vão
sem nunca encontrar

nos seus olhos se via que ela
verdadeiramente
estava procurando alguma coisa
e agia como se realmente acreditasse nessa busca
na existência dessa coisa
alguma...nenhuma

mas com passar dos dias,
repetidamente, visitando aquelas lojas no centro da cidade
quem observava constatava
uma falta de sanidade, de equilibração,
de dor cotidiana, dor diciplinar
aquela mulher tinha um não sei o quê que ninguém tinha
dona de uma vida que era outra coisa
de uma vida que era vida
mas não era vida entre nós
uma vida bolha
ela estava ali, mas não entre nós

Mas naquele dia...

Sim, houve um dia...

Naquele dia
ela não acordou com a mesma disposição

e o tempo parou

é como se a engrenagem da existência tivesse
ruído, fissurado, cindido
pelo martelar cotidiano
e não foi pra rua

Não foi
ou não queria ir

E a rua toda silenciou
sentindo a falta dela
o comércio ficou mais triste
ninguém sabia como agir
o cara que atendia na loja
perdeu-se entre fazendas e matizes
a mulher que a enxotava
ensimesmou-se
o cachorro que corria atrás dela, quando ela passava
aquietou-se
as beatas que comentavam: - "ela é louca, é louca"-
imolaram-se

o carteiro, o bicheiro, o indigente
a rua, o hidrante, o chão,
tudo sentia
(res)sentia a falta

e como se nada fizesse mais sentido algum
a mulher olhava em volta e sentia que era tudo e não era mais ela mesma
era a pia do banheiro, a torneira da cozinha, a porta da sala, o cadeado do portão
tudo menos ela
que a mulher não estava mais lá:
amalgamou-se

havia perdido a dimensão de si, o tamanho de si, a medida da própria alma
havia ela mesma se tornado coisa,
chão, poeira, tomada, tudo
e para sempre desapareceu
coisificou-se
não se distinguia mais de nada,
nem de ninguém
era um nada.

e se ela não estava ali, onde ela estaria?
no estado primitivo tudo é presente

desapareceu apenas,
sem mais nem menos,
nem mais era,
nem mais havia


E foi dada como morta.
ela que estava viva, só não estava entre nós.

"a cidade se quedou paralisada", buarquianamente,
em luto
e tudo que a desprezava se dava conta da falta dela
as lojas do comércio fecharam as portas
no dia em que todos constataram
a desaparecença

agoniada estava
e desde então agoniadas estão as coisas
as coisas todas
desde sempre e quase nunca.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Espaço de poiesis, de criação;;; comente, amplie, revise, sugira... plasmando a voz de Errante Trovador. Prefira identificar-se, pois preferimos cultivar as relações e colher parcerias no caminho. Agradecemos a atenção.