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POESIA COLABORATIVA
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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Fragmentos de memória e montante de saudade. Para Mãe Lenita, com amor!




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Parece que foi anteontem o dia em que eu, já nos idos dos meus vinte anos, adentrei timidamente a residência daquela senhora de aparência frágil e andar vagaroso. A casa tinha o teto rebaixado, paredes caiadas de amarelo, portas e janelas de madeira, simples, porém não menos acolhedora e aconchegante.




Logo, na chegada, me apresentei, disse minha graça e o que me levava até ali. Fui breve, queria mesmo era fazer o ontem ser hoje, o agora, àquela hora...e fomos reviver, ela, o passado límpido de sua vida, e eu, o mundo que desejava habitar e que o tempo me era nada generoso.


Lá estava, na sala, dona Silvanira Freitas Gravatá, ou mais adequado para sua missão neste mundo: Mãe Lenita, sentada num sofá de encosto alto e macio, coberto por uma manta de retalho dos mais coloridos e estampados; o piso parecia ter sido lustrado pra noite de gala, para um baile ou para visita há muito esperada; Da estante de madeira torneada saltavam porta-retratos, eram as revelações primeiras - antes de uma palavra, sequer -, sobre quem são todos aqueles que figuravam naquelas fotografias. Tudo adequadamente em seu lugar, num esmero revelador.


Na ocasião, pesavam sobre seus ombros e pés (únicas partes do corpo que reclamavam algum incomodo) 90 anos, com margem de erro para alguns anos a mais. No tempo dos seus pais, registrar menino era luxo pra pouca gente, era dificultoso, carecia procurar cartório e testemunhas; quando era possível registrar, sendo isso alguns anos depois dos nascimentos das crianças, havia transcorrido tanto tempo que nem mesmo quem gerou guardava o ano da rebentação. Ficava o dito pelo não dito, e ia toda prole de cinco, oito ou mesmo dez meninos, com anos de diferença, registrar no mesmo dia. Daí a controvérsia entre ter nascido em 1915 ou em 1908.


Também estava na sala uma mulher bonita, garbosa, de pé, na soleira da porta, entre a sala, qual estávamos, e a cozinha, sempre a auxiliar mãe Lenita em suas incursões pelo passado, relembrando um fato ou colocando em sua boca as palavras encobertas pelas tramas do tempo. Mais pessoas ocupavam o ambiente das quais não me recordo muito bem, mas sei que estavam lá, ouvindo a tudo atentas e receptivas. Mesmo para elas, que conviviam com aquela senhora de muitas histórias, parecia-lhes estranho tantas perguntas e curiosidades de um menino imberbe que chegara como quem viesse buscar notícia de um ente que mora longe e pouco se comunica. Eram muitas as histórias a serem desfiadas naquela tarde quente de primavera.


Não me ative às controvérsias da idade, Isso pouco me interessava, bastava mesmo era sua memória estar viva, poder falar, ter paciência para tanta aporrinhação de um jovem conversador e cheio de curiosidades. E teve, como teve, me surpreendi com tamanha generosidade, riquezas de detalhes e parcimônia. Mansidão e cuidados que só as avós carregam sobre o semblante de labutas, mas também de realizações.


E falando em labutas e batentes, a vida não foi tão fácil para esta senhora negra e de origem humilde. Nascida em família de poucas posses e marcada pela dor da escravidão, aportara neste mundo pelas bandas de Maracás, ali permanecendo entre seus familiares por pouco tempo, logo fora levada para Amargosa e, de lá, para Areia, hoje, Ubaíra, ali o destino lhe reservava mais partidas, outros caminhos e outra família, sendo esta de patrões, o que não lhe tirava o mérito dos cuidados e da orientação. Através dela chegara às terras das cabrucas do cacau, por intermédio do senhor Patrício R. Teixeira e da senhora Edith C. Teixeira, pais de uma grande personalidade no Direito, na literatura e na política: Euclides Teixeira Neto, com quem cultivou duradoura amizade e compadrio.


Quando chegou pelas bandas de Tesoura estava aos 15 anos de idade, já experimentada pelas andanças entre Maracás, Amargosa e Areia. Morou, por pouco tempo, acompanhando a família Teixeira, em Barra do Rocha, mas logo retornando à Tesouras na expectativa de “fazer seu terreno” trilhando um percurso próprio. Criou asas, voou caçando jeito de dar rumo à sua própria vida.


E se fez independente, casou-se como senhor Uilson, constituiu família e aos 25 anos deu inicio à sua missão: ser parteira, dona das mãos que por seu intermédio vieram ao mundo 2.100 (dois mil e cem) meninos, gente que hoje campeia em nosso torrão, em São Paulo, Brasília, Rio de janeiro, Belém do Pará e até no exterior, como ela mesma dizia sobre seus rebentos de suor, devoção e aflição. São eles das mais variadas profissões: advogados, médicos, soldados, engenheiros, professores etc...ali desvendava-se o mistério de tantas fotografias ordenadamente dispostas em sua estante de madeira torneada. Também cozinhava, era dela o tempero mais requisitado nos lautos jantares na Loja maçônica e nas casas dos doutos donos de anéis e diplomas.


Exerceu durante muitos anos a função de enfermeira prática, acompanhando os doutores: Rito, Anísio, Nelson e Aristóteles, cabendo-lhe a função de parteira, mas sempre sabendo dos seus limites, “até onde dava pra eu ir, eu ia” disse-me afirmando suas limitações, já que não houve tempo para o estudo; a escola, sonho confessado nas horas de conversa, ficara aplacada na memória como prostrada num altar repleto de luzes e delírios, sonhos tolhidos para os que ainda hoje trazem na tez a força da África, e não da senzala, como insistem alguns tantos por ai. Mesmo faltando o diploma e o anel pra ornar-lhe o dedo, era ela quem fazia exemplarmente o que muitas vezes cabia aos médicos, e sem cobrar nada por isso, aliás, nunca cobrou por nenhum parto que fez!


Em seus cadernos de anotações, os que restaram após furto em sua residência, constavam os nomes de boa parte da gente que ajudou a nascer. Constavam também as datas dos nascimentos e outras informações julgadas como dignas de notas. Ela fez questão de me mostrar estes cadernos repletos de datas e nomes. Lembro que fui tomado por forte emoção, ali constavam nomes de muitas crianças, todas nascidas vivas e saudáveis por vossas mãos.


Perguntada sobre quais procedimentos eram usados para realização dos partos, ela respondeu: “Comigo era assim...eu tratava como se fosse o médico, viu, porque minha experiência era...vinha assim como uma intuição que eu tinha. Eu tinha uma intuição de fazer como fazia, eu mesmo não sabia como era, “num” era?...vinha aquela intuição então eu fazia...quando vinha a criança, quando a criança era homem, quando era “mulé” era “pêra” uma intuição que eu tinha, se fosse bom e se fosse ruim, eu tinha intuição, se fosse pra mim, se fosse pra o médico, eu tinha aquela intuição. Então, graças a Deus fui muito feliz durante os tempos que peguei “minino”, eu fui muito feliz, viu! Deus me protegeu, nunca teve nada nas minhas mãos, nunca aconteceu nada comigo, graças a Deus!”


E foi assim em todos os 2.100 (dois mil e cem) partos feitos por esta filha de Nanã e Ogum: pela intuição, pelo cuidado e amor ao próximo, pela sensibilidade e respeito à energia que entornava este ato sagrado. Nunca pôs em risco a vida dos bebês tampouco das parturientes.


Mulher de fibra, solidária, alegre e festeira. Nos carnavais antigos, aqueles que não voltam mais, cordão de caboclo igual ao seu não existia; ela reunia um grupo com homens, mulheres, crianças e, fantasiados de entidades das matas, serpenteavam pelas ruas da cidade, entoando músicas, lamentos, chulas e puluxias. Dançava, sambava, rodava, reverenciava as entidades indígenas e africanas, tudo com muita vivacidade, entusiasmo e respeito.


Seus carurus espalhavam gente por todos os cômodos da casa, indo parar até na rua. A casa era pequena pra tanta gente que ia se deliciar com seus quitutes e entoar os estribilhos da reza que antecipava a comilança. Em tempo de natal, seu presépio era a coisa mais linda de se ver, fazia questão de reservar o primeiro quarto da casa para sua montagem. Era imponente, primoroso, uma montanha de onde se equilibravam imagens sagradas e outras nem tanto, mas que cumpriam com a função de referência e devoção. Chegou um tempo que o conservava impecável o ano inteiro, ela resolveu, por motivos que não me ficou totalmente esclarecido, não desmontá-lo. Só sei que este presépio possuía uma função de altar de penitências, reverências e dedicação ao culto sagrado do menino Jesus e das suas entidades mágicas.


E os partos, as festas: Cordão de Caboclo, caruru, presépio/altar... tudo isso foi se perdendo no tempo com a idade avançando e o corpo pedindo repouso, decerto que muita coisa ainda permanece viva, como tudo que até agora relatei e que jamais morrerá, porque enquanto houver história, memória e palavra, existirá a vida dessa grande mulher que há pouco nos deixou.


Partiu quase no esquecimento de uma cidade inteira, já que não morava mais pelas bandas de Ibirataia (e mesmo quando por lá morava as visitas eram poucas), pois precisou ausentar-se da cidade que lhe fez mulher e mãe de vasta prole; ali, na pequena cidade incrustada entre dois rios e altos morros cobertos do que de mata restou, não havia quem lhe reservasse o cuidado e dedicação; fora morar em Eunapólis aos cuidados de parentes e lá subiu aos céus, tranquila, como todos os justos e bons de coração. A vida lhe foi generosa, não lhe dera riquezas materiais, mas lhe deu dois mil e cem filhos, dignidade e vida longa (104 anos).


Hoje, tomado pelo saudosismo e tristeza trazidos pela notícia de sua ausência eterna, rabisco essas breves linhas como um neto que dedica seus poemas à avó e, talvez, as palavras, quaisquer que sejam elas de amor ou gratidão, não sejam capazes de dizer o que realmente senti ao me deparar com aquele ser de aparência frágil e de alma e coração gigantes. Mas é preciso partir do princípio das palavras para compartilhar com você, leitor, o meu encontro com ela, e que as mesmas não podem dizer com precisão e olhos marejados, mas servirão como canal de contato e aproximação!




Mãe Lenita, que Olorum te guie e proteja sempre. Axé!

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