O que há pra hoje?

POESIA COLABORATIVA
Suor. Espaço de exercício poético e livre escrita...

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Desemputecida


Uma Macabéa.
Era uma criatura desemputecida.
Casada e quieta, monogâmica clássica.
O que era de louça quebrou-se:
Arreganhou sua boceta mordedora
e deu uma bela mordida no cú do mundo.
Realizou-se plena como puta, kenga, meretriz.
Era seu sonho de menina: ser uma linda mulher às avessas, ser outra, emputecer sua vidinha desemputecida.

terça-feira, 28 de junho de 2011

DIÁRIO DE BORDO : São joão

As tranças de Ric. Festa de aniversário de Beto com mil queijos e vinhos e trilha sonora de Mon. São jão no Bezerra com os Abreu e os Jerônimo e aquele perfume de memórias. Fogos, fogueiras, quadrilha, bandeirolas e a certeza de que a força de uma casa está na cozinha.

Chico Cezar, Elba Ramalho e Show de Dominguinhos, com aquela dor no peito e o medo de que ele se vá sem dar-lhe um abraço.

Notícias do Recôncavo. Reencontro com amigos de viagem, novas relações e o cultivo dos bons encontros.

Amada, minha presença querida. E um contentamento de estar com quem estive, feliz em saber de quem de longe lembrava de mim.

Gostosa com a vida, recebendo-a, desejando-a, queredora de algumas conquistas, feliz com as já conquistadas e ciente do imenso caminho a trilhar.

AH! E alguns terríveis quilos ganhos de forma deliciosa.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O que vem de baixo...

Palavrinhas vis

Como duas formiguinhas

Pronunciadas por criaturinhas tão minúsculas

Me beliscam

E incomodam.

Tão miudinhas

Tão insignificantes.

Picada fina, dorzinha aguda, ousadia pura.

Chega de dor.

Ou já era hora, ou já não era sem tempo.

Ei-las lá,

esmagadas,

formigas-pasta na sola de meu sapato novo.

Pronto!

Nada mais de dor. Só gozo.

sábado, 18 de junho de 2011

TEMPO DE ESPERA


(Para ser lido, em voz alta, em filas de bancos, de espera de caixa, de supermercado, ou na fila de uma repartição qualquer.)

Esperou nove meses para nascer.
Parto frondoso, orgasmo invertido* e cheio de dor.
Esperou a infância inteira passar para ser gente.
Eis como era:
Esperava em filas de bancos,
esperava nas filas dos caixas,
Esperava, esperava, esperava.
A hora de ser chamado,
a hora de ser mamado,
a hora de ser comido,
e todas as outras horas:
a de ser citado, de ser nomeado,
ou reconhecido, ou olhado, ou contemplado.
Esperava aflito a hora de amar.
Esperava paciente o tempo de ser ralhado, e de ser rechaçado, e de ser oprimido.
Esperava o transporte passar.
Esperava o tempo abrir,
e esperava a sinaleira escancarar em seu verde mais espantoso.
Atormentado, esperava a hora de comer, a hora de beber, a hora de excretar, a hora de expelir.
Eperançoso esperava sempre: o dinheiro cair do céu; os milagres se manifestarem; o grande dia chegar.

Esperava sempre um grande amor.
Essa espera era a única que não lhe extenuava.
Confesso: sentia que essa espera era uma espera besta.
Refletia um pouco, pensava em desistir.
Esperava todo dia um pouquinho mesmo assim.

Mas o que gostava mesmo era de esperar pela felicidade.
Se perfumava todo e esperava a felicidade bater em sua porta, cheia de vida e saúde, casta e silenciosa.
Ficou foi besta quando a felicidade chegou:
Era uma felicidade barulhenta, rock and roll, gostosona, uma felicidade puta, vadia, vagabunda, insandecida, cheia de dentes e doida para as pernas abrir.

Poesia escrita na fila do Banco do Brasil, uma fila que não teve fim.

* Referência a música "Nave Maria" de Tom Zé

Marchinha pela liberdade de expressão

Esta folha é verde
Verde esta folha é
Se toda folha fosse verde
Não despencaria do pé.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Epifania

Era um menino diferente
Como toda gente parida no sertão
foi criado pra ser lavrador:
arar a terra, cuidar da cova da semente, plantar direito, recobrir a semente com uma tira fina de areia adubada.
Por a mão na terra e sentir parte daquilo, ser daquela natureza.
Afagar a terra, debulhar o trigo, decepar a cana*.
Com o trabalho na terra o menino sentia-se assim: parte.
Era um prazer imenso pro menino lavrar fazer o que fazia.

Mas com o tempo o menino percebeu que era empregado de um patrão escroto que lhe açoitava de tanto trabalho, e que tinha de tudo sem nada fazer.

Viver aquela opressão diária do patrão deixava a hora passando mais vagarosa e fazia rebuliço e nó no peito.
Tédio. Tédio. Tédio.
Resolveu matar o patrão e ser patrão ele também.
E foi um patrão escroto. Desses que escravizam, que envenenam, que oprimem e até matam se puderem fazer.
Era essa sua vida de patrão.
Com o tempo a vida de patrão não parecia mais ser tão grata escolha. Porquê?

Não era possível que toda a gente fosse homem praquilo só.
Era só aquilo: conforto, solidão, inveja e ódio.
Tédio. Tédio. Tédio.
Com o tempo nada mais lhe dizia respeito.
O menino largou mão da crueldade de ser patrão.
Deu tudo, doou móveis, fazendas, xácaras e sítios...
Toda propriedade....
Nada mais ia ser seu.

O menino percebeu que a religião era quem tinha as respostas, que mesmo com todo poder que viesse a ter como patrão, estaria sempre subjulgado à uma força divina maior que a tudo via, julgava, absolvia ou condenava.
A religião dava ao homem mais felicidade que a propriedade.

O menino tornou-se religioso.
Achou que com um Zeus bondoso ia aprender o que era ser gente, o que era viver.
O menino julgou que assim ia ter respostas.
Mas com o tempo Zeus se mostrou não ser boa opção. Porquê?

A inteligência do menino era grande.
Seu talento retórico era impressionante em público.
Com o tempo o menino passou a gostar de ver toda a assembléia lhe ouvindo...
Uma plenária inteira atenta como ovelhas ao seu pastor...
ovelhas ocas, sem direção...
Passou a amar ter aquelas ovelhas silenciosas para adestrar e mostrar o caminho...
-Acima! Abaixo! Esquerda! Direita! Chão, chão, chão-chão-chão!
Seu poder era imenso. Um autêntico e genuíno sacerdote filho do poderoso e benevolente Zeus.

Era só isso?
Promover a ligação da terra com o cosmo?
Por que não disseram logo?
Era bobagem, o menino fazia isso "com o pé nas costas", como se diz.
Tédio. Tédio. Tédio essa sua vida de sacerdote.
Ser corrupto consigo mesmo, inventador de discursos de uma voz só.
Porta-voz de um Zeus que oprime, ordena, nomeia, julga, castiga...
Queria não.
Num ato de amor, extremo amor, o menino abandonou a religião e as ovelhas.

Havia percebido que o discurso laico da ciência era o que movia o mundo de seu tempo.
E estava resolvido: o menino ia tornar-se um intelectual apenas.
O menino começaria lendo filosofia.
Da filosofia rumaria aos estudos de física quântica.
Leria seus livros, veria seus filmes e só.
Mas com o tempo ser intelectual passou a não ser uma saída viável para a felicidade. Porquê?

O menino via tudo, a tudo olhava.
Reconhecia misérias, ignorâncias e preconceitos.
Olhava para tudo com desconfiança e via que o mundo não tinha mais jeito de ser...
Tudo lhe parecia óbvio e entrópico pela própria natureza
Era só isso: ter luz, enxergar tudo, desacreditar deprimir-se.
Era fácil demais.
Tédio. Tédio. Tédio.
O menino, num ato de rebeldia, fez uma grande fogueira com seus livros e escritos.
Aquilo não lhe dizia mais respeito.

O menino descobriu, por fim, que sua sina seria correr sempre atrás de beleza - que parecia sempre escorrer pelos dedos.
E o menino refletiu: só os poetas são felizes, ainda que tristes.
Só a metáfora lhe parecia, depois daquela jornada, potente, libertadora.
A capacidade de jogo, de criação, de relação era o que fundamentava todo o resto.
Alcançara o nirvana.
Eureka!

Estava feito, o menino, dali em diante, seria um fabulador, um POETA.



* "Cio da Terra" -

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Comendo tijolos


Brincando de explorar a essência humana. Escolhi com cuidado e Comprei um belo tijolo na velha casa de construção. Engoli todinho. Tijolo de difícil digestão. Tijolo disfarçado de bobo-da-corte do mundo. Seu nome: Hauser, uma carta na mão, um livro de oração e uma faca amolada em ferida aberta no peito do bicho. Cada um por si e Deus por todos ou - em língua alemã - Jeder für sich und Gott gegen alle - de Werner Herzog.

Hauser, Observado,relatado, estudado, analisado, dissecado... mas nunca compreendido. Quem será ele? O neto do grande general? Um mendingo? Um louco? Um mentiroso? Um deus? Um poeta, um artista? Uma criança? Ou um monstro?

O que é o humano? Uma construção social? Um fato em si?
Hauser é um incomodo. Um fiapo enfiado entre os dentes. Um desconhecido assassinado por um desconhecido. E há tanto a saber... mas a curiosidade não é fonte de compaixão.

OXALÁ EPISTÊMICA!!! Por luzes Macabéicas Hauseanas que nos mostre o paralelo, o paradoxo, o paroxismo!!!

O que é o mundo para alguém que viveu acorrentado contemplando uma parede? O que é o mundo para alguém que viveu acorrentado a filtros e estereótipos conceituais e caricaturas que são condicionadores e adestradores da percepção e do conhecimento e do sentimento humano? Ora, vá lá!!! “Tanto faz ser pão e circo” ou “pão e água”. Há muitos cativeiros nesta terra. Há tantos cativeiros nesta terra quanto tijolos a deglutir.

Ai. Meus ais. Sonho com o tal discernimento.

Ahhhhh! Hauser, uma carta na mão, um livro de oração e uma faca amolada em ferida aberta no peito do bicho. Guardando no peito uma história incompleta que me diz tudo e que a tudo me faz dizer respeito: o homem algoz do homem.

Ahhhhh! Hauzer, só um cego é capaz de ver que as montanhas não exitem e que é possível ir em frente passo a passo. Só o homem civilizado é capaz de achar que a torre ou o deserto ou a floresta são maiores que um quarto, um quarto/cativeiro.


Silêncio.

Vazio.

Hermético?

Hauser, uma carta na mão, um livro de oração e uma faca amolada em ferida aberta no peito do bicho. Se ao avesso o prazer estético desse filme me conduz... Fito-me feliz e triste. E ao artista, quem ou o quê o comoverá para além da compreensão? Se assim preferir, talvez você pudesse parar de ler este poema e assistir a um filme. Talvez.

Conferência acadêmica: Liberdade e Diferença

Estava só de corpo presente naquela tediosa sala de conferência. Meus pensamentos estavam na praia, nas montanhas e na escolha de onde passaria o próximo feriado.

Ouvi, então, a primeira frase:

HOMEM: A LIBERDADE SE CONSTRÓI NA RELAÇÃO COM O OUTRO”.

Aquelas palavras tragaram-me com a força das nuvens e me lançaram violentamente na última cadeira daquele auditório.

E não era tudo!

Seguiu:

HOMEM: a convivência livre dos juízos de valor, e sem tentativas de rotulações e enquadramentos é a única forma de viver realmente livre. Sendo a liberdade algo que se constrói na relação com o outro. é no exercício de comunicação e na prática da alteridade que melhor se gestão as normas de existência e bem viver.

O que era aquilo que aquele homem estava falando? Ainda consegui ouvir mais algumas de suas idéias e a cada frase sua fui sentindo um entendimento das coisas.

HOMEM: ...observando nosso tempo e suas contradições, fica claro que a atual forma em que nos organizamos não garante o bem viver para a maioria das pessoas. Ao contrário, os princípios de organização que normatizam nossa sociedade são pautadas numa dês-razão opressora das liberdades humanas e degradadora do espaço em que vivemos”.

Dês-razão?

Vivemos pautados numa dês-razão!!!!

HOMEM: Ao invés de posturas pessimistas e conformistas é necessário a ação e a consciência de que “nenhuma realidade é imutável”, “toda ordem pode ser invertida” e que “outras realidades são possíveis de serem construídas”.

Ao terminar de falar esta última frase o homem vestiu uma saia longa rodada, pesou a mão num batom vermelho sangue, calçou um salto plataforma e saiu desfilando, flutuando e em silêncio do auditório. Todos apenas acompanhávamos aquilo: aquele homem rebolando livre.

Poesia em 140 caracteres

Toda narrativa prescinde de um olhar, de um sujeito encarnado... e todo olhar é uma narrativa. Vejo e constato: é preciso ser o narrador da própria vida.

Quetim...

(Miguel em pesadelo)
Homem de Branco (com um chicote) - Não! Cuidado, meu fi. Faça isso não, mofi.
Miguel - É o quê que é? Fazê o quê Paivei? Quê queutô quereno fazer?
Homem de Branco - Isso que essa cabecinha sabida tá pensando aí, mofi. Paivei sabe que mofi tá pensano ni fazer. E Paivei num vai dexar mofi fazê essas coisa. Faça isso que vósmicê quer fazer não, mofi... Faça não, mofi.
Miguel - E o que é que é que eu to querendo fazê, paivei? Vosmicê tem sabença disso é? Então é fazer o quê? E mais... porquié que devo fazer não? Hun, Paivei?
Homem de Branco - (Bate o chicote insandecido) Cadê a vergonha, minino? Hun!? (Pausa. Silêncio) Ponha a vergonha na cara, ponha, mofi. Cadê as maneira, minino? Hun? É esse seu modo e maneira dilibertinagin véa passarinheira? É esse seu modo e manera di ser feliz infeliz desinfeliz qui nem se desse conta di quanto?Quede us custume do povo de vossuncê, mofi? Hun? Oh, mofi, (traz o menino ao colo e lhe acarecia, ninando) manhãzinha, derna de cedo, manhã quando nois acordar, sabe quem vai tá aí? Ela mofi a filicidade. (Excitado) É, mofi! Ela vai chegar toda lustrosa, bunita, dengosa e vai disabar sobre os home*. (Lúcido de sua persuasão) Faça nada não, meu filho. Fica aqui, olha, dorme quetim, meu filho. (ninando) Quetim. Quetim. Queti. Quet. Que. Qu. Q... Sussussussussu... oia a felicidade, oia a felicidade. (Excitadíssimo) Oia, mofi, oia... oia aqui. Oia. Acorda, mofi. Abri us oin, abre, mofi, abre us oin.
(Miguel acorda assustado)

*citação: "Menina amanhã de manhã" Tom Zé e Perna

terça-feira, 14 de junho de 2011

Esperando Godot




Tomou com acuidade seu melhor banho.
Lavou-se com carinho.
Perfumou-se todo, enfeitou o corpo e adoçou o pensamento...
Estava ali, à meia-luz.
Esperando a hora da chegada de sua felicidade pelo portão.

Amor Azul ou voo de borboleta



Era um amor desses azuis,
dos que não precisam de muito verbo.
Era um amor desses azuis,
calmos e cálidos, de companhia doce, forte e segura.

Era um amor desses azuis,
de não se acabar mais nunca,
de se sentir perto, mesmo quando se está longe,
de se sentir seguro, mesmo correndo riscos,
de se sentir assim: leve.
De certo que dava um trabalho, manter a serenidade leveza desse amor,
Não era fácil, mas era o preço.

Era um amor de provocar revoluções íntimas.
Revoluções com bandeiras azuis.
Mas era sempre sob a luz azul de uma grande lua cheia no quintal de casa que se iluminava claramente a que tinha vindo esse amor:
para provocar os voos das borboletas todas no peito.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Sem pistas

Olhei em volta já no finalzinho - só constatei que realmente estava tudo errado - e como modo de render-lhe alguma misericórdia pensei:
- É, talvez seja 'eu' o problema. Devia pedir deesculpas.
Apenas pensei nessa subordinação, depois percebi que era puro delírio.
julguei-me péssimo.
Olhei outra vez em seus olhos, dei-lha um beijo de adeus e parti sem deixar rastro, perfume ou notícia.

Insensível

Me viu chorar soluçando.
Olhou pro lado, achou normal, fez um muxoxo e voltou a dormir o delicado e indiferente sonho dos anjos.

Diante de um vinho seco tinto

Me coloquei diante de uma grande adega....
Embriaguei-me o quanto pude...
Vesti meu vestido vermelho rendado...
Tomei todo aquele vinho dulcíssimo...
e dancei ciranda até o dia clarear...
Foi quando deu-se meu desencantamento.

A última canção

Era assim....
Cheio de agradecimentos.
A tudo agradecia,
Fazia o que fazia, mas davam-lhe os descontos.
Pediu a vez.
Ao invés de falar fez o que mais gostava de fazer... cantou.
Cantou e era aquele seu modo de dizer adeus.

Ausente

Na hora mais decisiva, quis tirar meu som da dor.
Era preciso coragem.
Busquei a dor - era golpe certeiro.
Falhei.
Cadê a danada?
A dor tinha sumido e levado tudo consigo embora.

Desmedidas

Eram dois cartoons. Eram dois bonitos, soltos na vida, cabelos cacheados, dourados cheios de fios zigzageando as cabeças pesadas. Sim, as cabeças pesavam aos dois... tinham esse senão: a cabeça não lhes estava em proporções com o resto do corpo. Era impressionante, as cabeças pareciam medir quase que o tamanho do resto do corpo inteiro. O desalinho provocava admiração a quem os via. As cabeças grandes e pesadas dificultavam o equilíbrio. Impossível manter a cabeça no lugar, de modo que as cabeças sempre estavam no mais das vezes quedadas ao chão sobre uma almofada confortável - para não machucar. Mas não ter a cabeça no lugar era sinônimo de solidão. Como não tinha a cabeça equilibrada sobre o pescoço não conseguiam manter um diálogo, uma comunicação. Não era possível aos dois entender-se nunca. Parecia pastelão de circo pobre com palhaços frágeis. Quando um estava com a cabeça equilibrada, estava o outro arrastando sua cabeça no chão. Era difícil manter as duas cabeças no lugar ao mesmo tempo. Era necessário um malabarismo tremendo de ambas as partes. Não era fácil conseguir. Manter as duas cabeças no lugar e além disso conversar... Impossível!
Tudo parecia muito difícil naquela situação. Olhavam-se sempre com ternura, mas, no fundo, sabiam: nunca poderiam dividir a mesma idéia juntos.
E até hoje continuam juntos e repetem-se as retóricas perguntas:
- Será que não? Porque não?

A lua me disse

De noite a lua me disse
- Há um perfume de jasmin no teu quintal.
E como se a lua mentisse
desconsiderei querer sentir o doce cheiro de flor.
Sabia que a tinhosa estava querendo apenas amolecer meu coração
com sua poesia brega, futil e boba (ou era como me soava?).

Uma faca

Havia.
Era uma faca amolada, grande, suntuosa...
Cortava bem e cortava tudo.
Talhe perfeito.
Havia nascido para aquilo, para ser faca....
Era essa sua vocação desde cedo.

Havia?
A faca morreu?
!

Para longe

Foram levados para longe, do lugar, e um do outro.
Os dois estavam fadados à isso...
Dormiriam... cada um em seu exílio.

Um grito

Não dava mais para argumentar... queria ganhar a discussão no grito, urrou nervoso, feroz e arisco qual um leão:

- Hurrrrrr!

Houve um breve silêncio. Respondi-lhe pouco depois:

- Quer uma água com açúcar? Um suco de maracujá? Um chá de camomila? Um doce? Me diga.

Silêncio sepulcral, como um grito suspenso no ar.

Quem estaria precisando de um chá? Quem responderia?

TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS

Seja você mesmo e deixe o outro

O outro é outra coisa mesmo

Coisa sem fim

Fora de ordem

Fora do eixo

Fora de órbita

Estou eu ou está o outro

Entre eu e outro só há desvão

Mas é isso. O outro é outra coisa mesmo.

O outro é outra coisa. (Enfático) Mesmo!

Minhas idéias apenas passam por mim...

Sou puro caminho, vereda plena, estrada nua, trilha de silêncio... Psiu!

É isso, se de fato existe alguma, essa é nossa fronteira.

Desidentidade



*



‘Por que você me olha como se procurasse alguma coisa?’, disse ele.

‘porque estou tentando me ver em você…’, respondi.

‘Ver o quê? Você já nem sabe quem você é’. Provocou. ‘Nem essa cara que você tem é sua.’,

— Nossa! Ele te disse isso?!

— Disse.

— E o que você fez?

— Quebrei ele todo na porrada!

— Sério?! E aí?

— Aí que ao olhar pra ele especado na parede, todo quebrado, não me vi mais eu. Só vi a minha desidentidade mil vezes multiplicada.



*








sábado, 11 de junho de 2011

Rascunho


Queria que ela fosse a obra completa,
mas sei que,
com toda a sinceridade,
estou diante do rascunho.

Ateliê vazio

O menino era artista do simulacro desde cedo,
desde cedo era assim... ator.
Cantava, dançava, rebojava ao som mais leve de atabaque, cuica ou carron.
Nasceu e desde que se deu por gente se pôs a criar o que chamava de "primma obra".
Criação que duraria o tempo de toda sua vida.
Passava os dias assim... ilhado numa sala de ensaio, trancado e criando só.
Cresceu: muleque, menino, rapaz, jovem, moço, homem, senhor, senhorzinho, iô.
O tempo não lhe fora suficiente.
Não conseguiu terminar de criar sua performance, de terminar sua obra prima.
Seu espetáculo morreu com seu corpo, sem estréia.
E hoje, o mundo inteiro tenta, descobrir o que o artista fazia trancado só a vida inteira em seu ateliê de criação.

Não se deu conta:
1. De que a arte é também um ofício, e de que a divisão artista artesão foi superada;
2. De que o teatro é uma arte coletiva;
3. De que a simplicidade e a falta de pretensão são bálsamos do artista;
4. De que o talento é um nome que deram às facilidades que alguns indivíduos tem mas que a disciplina e a rotina constroem com precisão em qualquer um que se permita;
5. De que a arte é a descrição de fotografias tiradas da vida quando ela mostra sua fragilidade ao baixar a guarda*.

E hoje, aquela sala, que já foi templo, é apenas um ateliê vazio.


* Tom Zé

sexta-feira, 10 de junho de 2011

(DES)Encantamento

Fiquei na frente do espelho,
dizendo pra ele meu nome,
com lágrimas e dores de cotovelos,
em apelos, apelos, apelos...
e minha imagem some.

Foi assim que perdi meu reflexo.
Uma desaparecensa só.

Mantras de venturas leves

Quero ser hermético e pulular...
Ser hermético e pulular...
Ser hermético e pulular...
Quero ser hermético e pulular...
Ser hermético e pulular...
Ser hermético e pulular...
Quero ser hermético e Multiplicar.
Ser hermético e pulular...
Ser hermético e pulular...
Quero ser hermético e transmutar
Ser hermético e pulular...
Ser hermético e pulular...
Ser hermético e pulular...

Ser hermético e pulular...

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Pedido de Arrebentação

Fiz o pedido.
Ficou puto, insandecido, violento como uma gata parida.
Saiu batendo todas as portas.
Senti uma dorzinha aguda qualquer com aquela porta arrebentação.
Quebrou tudo e foi-se embora pra sempre.
Se ele soubesse fazer... se ele pudesse satisfazer aquela minha vontadezinha qualquer...
Era um pedido pouco, pedido naco, nesguinha boba de pedido...
Eu só havia pedido pra ele me fazer carinhozinho por dentro*.

Captura de poesia cotidiana de Évelin Correa

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Felicidade enigmática

A - Quem é ela?
B - Não sei, uma moça qualquer que anda por aí.
A - Mas você a conhece?
B - Não... não... conheço de ver passar... de ouvir falar... um conhecimento assim assim.
A - Ela tem um ar enigmático e feliz no olhar, não tem?
(B não responde. Silêncio sepulcral)
B - A felicidade dela me incomoda!

Delicada Intervenção Urbana 01

(Na praça da cidade num dia de sol)
Três homens, cada um porta seu próprio guarda-chuva, vestidos de terno e gravata, usam um grande headfone nos ouvidos, óculos escuros. Andam pela praça, param, congelam, podem andar em coro, executar pequenas células de movimento, coreografias inteiras.
Uma mulher, de vestido vermelho rodado, cabelos longos e cacheados e soltos, passeia pela praça. Ela está embriagada de poesia, corre toda praça lendo Wally Salomão. Ela, lendo, persegue os homens. Eles, indiferentes, continuam entre si, surdos, surdos. Eles dançam, correm, param, sentam, deitam, rodam, roçam, brincam apenas entre eles. Eles não dispensam um naco de atenção à ela.

Menino Miguel

O home é bicho do mato, bicho arisco, que trais cunsigo uma querência de nunca cessar. O home é bicho arriscoso é bicho queredor. Ele quer a rima certa, a midida mais justa, o canto furtuito passarinheiro, o acorde perfeito maior... I tudo isso pra quê, minha gente? Só para poder gritar pro mundo "EU QUERO"? Só isso? Então é isso? Apois que no final de tudo, tudo que é vivo morre, e nois volta tudo praquilo que nois era, junto da terra, agarrado nela, sintindo a terra resvalar e iscorrer nas nossa boca, nos nosso ouvido. Tem carência de tanta querência não. Tem não. Querer pricisa de muita ambição de nois. Sonhar é muito mais milhô. Sonhar e fazer aconticer os sonhos. Isso é que é. E se o sonho for grande, gordo, luzido, deixar ele ser. Sem querer. Sem a maldade da querência, da ambição.

Modos de fazer culturas

Contracultura
Contracultura
Contracultura

Contra a cultura
Compra cultura
Compre culturas
Metacultura
Meta a cultura
Meça a cultura
Peça cultura
Beba cultura
Páracultura
Pró-cultura
Pré-cultura
Pobre cultura
Pop cultura
Supra-cultura
Aculturação
Anticultura
Agricultura
Multicultura, intercultura, transcultura
Puericultura
Acupuntura
Cultura líquida
Cultura pós-pós-pós
Cultura de protozoários, de bactérias e outros pequenos animais.

Eu e o outro

o outro é outra coisa
o outro é outra coisa
o outro é outra coisa

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Eu e eu

Num dia de escolhações

Resolvi abandonar os cativeiros morais

E desde então

Eu e o meu avesso andamos tão bem um com o outro

Que ele anda a passear comigo pela casa, e juntos saímos à rua

Para tomar banho de sol.

E já não o escondo nem lhe chamo defeituoso e coxo.

E tão pouco ele me rotula, ordena ou castra.

Caminhamos por ai,

Experenciando nossos desarranjos

Descobrindo a harmonia dos assimétricos

Num compasso lento, doce e calmo.

Eu burocrata, ele anárquico

Eu colecionador, ele desapegado.

Agora vivemos assim,

Cuidando um do outro e sem nos querermos negar ou verter

Quando ele me protege eu o ponho no colo, lhe faço cafuné.

O fato é que já não nos interessa mais andar retalhados pelo caminho.

Meu benzinho - um escroto de marca maior


Meu benzinho era assim...
avesso.

Não gostava de me ouvir cantar achava minha voz estridente,
nem de ler minhas poesias gostava, as julgava pobres... aquelas escritas no velho e pequeno caderninho azul.
Não gostava de me ver em cena, soava sempre canastrão, desmedido.
Não colocava fé nenhuma em minha dança - me julgava desengonçado - qualquer parceiro era um parceiro mais altivo.
Não suportava me ouvir falando de filosofia, da arte, ou do cotidiano - parecia sempre um discurso hermético e demasiado confuso.

Meu benzinho era assim...
avesso.

Se eu abria um vinho - era um beberrão,
se a vida estava tediosa - reclamava de barriga cheia.
Se eu comia muito - estava gordo,
se eu comia pouco e praticava exercícios - estava mentindo pra mim mesmo que conseguia emagrecer.
Se me entorpecia - era fuga, me julgava fraco para dirimir os problemas.
Se eu resolvia os problemas - podia ter feito de outro modo, mais inteligente, mais econômico, menos trabalhoso.

Era esse todo o desalinho: uma falta de querer bem, uma falta de tudo.

Chutei o pau da barraca, meti o pé na porta:

Mandei o escroto tomar no cu, se fuder e dar conta de sua própria vida.

Dei um pé na bunda de meu benzinho e fui viver minha vida, leve como pipa, como pluma.

Oração

Que seja eterno até a quarta-feira
E que santificado renasça por outro no terceiro dia

E se a lenha não estiver verde
que se acenda a chama

e viva cada vão sentimento
como se fosse o único ser que ama.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

O Operário

E ele queria ser ator.
Fazer papel de pedra,
papel de planta,
de arbusto,
de musgo,
e de flor,
e de nada.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

O Bolo


O recheio e a cobertura eram de chocolate e coco,

que por coincidência ou não,

eram seus sabores preferidos.


Cortou uma fatia,

observou seu aspecto

e sabia que, querendo ou não, teria que comer.


Sentou-se, empunhou os talheres na intenção de saborear

um bom pedaço

e conhecer, pelo gosto,

a função e o efeito de cada ingrediente.


Não estava simplesmente comendo aquele bolo.

Investigava cada detalhe que o constituía.

De modo que já na primeira garfada

percebeu que as claras tinham sido mal batidas,

que tinham pesado a mão no açúcar,

que havia muito fermento,

e que o bolo fora mal assado.


Há coisas que nem a fome nem a gula justificam comer.

Há outras que só isso.

Rei Lear diz:

Livre o espírito, o corpo é delicado.

Responde o trovador:

-Delicada é a tentativa.